sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Double Fantasy, a redescoberta

Ultimamente (leia-se nos últimos dois anos), a quantidade de filmes que tive a chance de ver no cinema tendeu a zero. O DVD de casa também não tem tido muito uso, coitado, porque a vida da paternidade e da maternidade ainda não permite que eu e a namorida curtamos os filmes de que gostamos (ou não) com a frequência de antigamente. Assim, o CD player do carro tem sido o meu refúgio, já que levo pelo menos meia hora de carro entre minha casa e o metrô. E noutro dia, finalmente pude apreciar o último disco de John Lennon (com Yoko Ono), Double Fantasy.

Até a semana passada, este foi um disco com o qual nunca tive muita paciência - talvez por meu irmão rodá-lo dia sim, o outro também quando ele estava na oitava série. Além disso, era o disco em que ele havia dado parceria explícita a Yoko Ono, "aquela freak japonesa que acabou com os Beatles e que canta mal pra caramba". Sem contar o massacre nas rádios que foi "Woman", que em certa altura do campeonato eu não aguentava mais ouvir. Enfim, foi um disco que depois comprei em CD não tanto por gostar dele mas antes para tentar entendê-lo. Sem garantia nenhuma de que isso realmente ocorresse um dia.

E na semana passada, indo ao trabalho, senti nada menos que uma revelação. Com 40 anos nas costas, um casamento e um filho, a gente acumula certas experiências (dãããã). E além disso, meu ouvido para o inglês estava particularmente afiado nesse dia - entendi praticamente tudo o que os dois cantaram no disco, e não pude deixar de me emocionar: é um disco em que os dois, literalmente, abriram sua intimidade para o mundo. E minha identificação com os dois foi total.

Ouvi o otimismo de John ("(Just Like) Starting Over") contrabalançado pela necessidade de afeto de Yoko ("Kiss, Kiss, Kiss"); a certeza de John de que o pior já passou e que ele se sente completamente livre ("Cleanup Time") rebatido pela queixa de Yoko de que está tudo muito frio e muito confortável ("Give me Something"), o desentendimento resultante entre os dois ("I'm Losing You"/"I'm Moving On"); e finalmente, para fechar o lado 1, uma canção de ninar de John para seu filho ("Beautiful Boy"). Como às vezes canto para o meu filho para ele dormir, foi uma canção que me tocou profundamente.

Mas espere, há mais! O lado 2 começa com "Watching the Wheels", uma reflexão de Lennon sobre os anos em que ele ficou parado, musicalmente falando. Sobre como é bom às vezes dar um tempo até em suas maiores paixões, simplesmente para descansar (e poder excercê-las ainda melhor, mais tarde). E como ele lidou com isso, sem ligar para o que os outros diziam, sendo até mais feliz do que era quando era um astro do rock. Evidentemente que a fortuna que ele amealhou ajuda bastante um projeto desses, mas o significado espiritual da canção permanece: é um chamado à nossa reflexão para que decidamos o que é realmente importante para nós na vida - algo muito apropriado quando a gente chega na casa dos 40...

As faixas seguintes ("Yes, I'm Your Angel"/"Woman"/"Beautiful Boys"/"Dear Yoko"/"Every Man Has a Woman Who Loves Him") são uma celebração do amor entre os dois - dando a entender que, se as brigas eram intensas, as reconciliações eram ainda mais intensas que as brigas. Essa celebração é cantada por ambos. Ambos assumem explicitamente o quanto se admiram, o quanto se amam, o quanto se completam, o quanto necessitam um do outro. Enfim, conseguem tornar pública e profunda a experiência do verdadeiro amor que as pessoas sentem (e que particularmente sinto pela minha namorida), e  John Lennon e Yoko Ono mostram que têm talento de sobra para isso.

O disco original termina com "Hard Times Are Over", a expectativa otimista de Yoko para o futuro que (não) se seguiria. Não pude deixar de chorar ao ouvir essa faixa, pensando que John morreria pouco mais de um mês depois do disco ter sido lançado, em 8 de dezembro de 1980 - o dia em que completei onze anos de idade.

Por que 40+?

Pensei em escrever um monte de bobagens a respeito, mas no final das contas é o Veríssimo que vai me salvar:

A Casa dos 40

Luis Fernando Veríssimo

Quem já entrou na casa dos 40 sabe do que eu estou falando. Eu entrei na casa dos 40. A porta se fechou atrás de mim. As tábuas rangiam sob os meus pés. No jardim havia duas estátuas de anão com a pintura descascada e o ar de quem sabia alguma coisa que eu não sabia. Mas a única coisa que podia ter dito — "Não entre." — não foi dita. E aqui estou eu cercado de fantasmas, suando frio e me apalpando. As pessoas invariavelmente começam a se apalpar na casa dos 40. Para verem se é verdade e que dorzinha é aquela.

Dos fundos sombrios da casa dos 40 vem um murmúrio que a princípio eu não entendo. Parece dizer:

— Tcheca, tcheca...

O que será "tcheca"? Tento fugir mas não encontro mais o trinco da porta. Pelas vidraças empoeiradas mal consigo ver a casa dos 30, do outro lado da rua. Não adianta gritar. Lá está havendo uma festa. Ninguém me ouviria.
E pensar que eu passei pela casa dos 30 sem aproveitar nada. Olhava para a casa dos 40 e a achava atraente. Me imaginava nela, grisalho, sábio e respeitável. Não sabia que seria assim por dentro. Perdi a festa na casa dos 30 e agora não posso voltar.

— Tcheca, tcheca...

Arrasto os pés pelo chão. No escuro, ouço um bater de asas. Morcegos! E os passos miúdos de ratos assustados. A escassa luz que consegue ultrapassar as vidraças mal ilumina as teias despencadas que oscilam lentamente no meio da sala, como véus sepulcrais.

— Tcheca, tcheca...

De repente, o relógio da parede começa a bater. Doze vezes. Depois da última badalada abre-se uma portinha e sai um cuco desanimado. Com olheiras. O cuco olha para todos os lados, suspira fundo e volta para dentro do relógio. A saída! Onde fica a saída?

— Tcheca, tcheca...

Surge o mordomo. Uma cruza de Vincent Price com uma hiena. Sugere que eu sente e fique à vontade, os próximos 10 anos passarão num instante. Tento dizer que desisti da idéia, quero voltar, esqueci meu leva-tudo na casa dos 30, a saída! O mordomo sorri e diz que só há três saídas na casa dos 40. Para cima, para baixo ou para a casa ao lado.

— A casa ao lado?

— A casa dos 50. Você não gostaria de lá.

Perco a paciência.

— Mas afinal, esse "tcheca, tcheca", o que é?

— É a primeira recomendação que fazemos a todos que entram na casa dos 40. Check up geral. Só apalpar não adianta nada.

Texto extraído do livro "Sexo na Cabeça", L&PM Editores - Porto Alegre, 1982, pág. 153